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Fraudados e mal pagos: impactos do julgamento da pejotização, no Tema 1389, pelo STF

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Trabalhadores pejotizados ganham salários baixos, ao contrário do que vem apontando o Supremo

No início de outubro, por decisão do Ministro Gilmar Mendes no ARE 1532603 (tema de Repercussão Geral 1389), o STF promoveu audiência pública para debater o tema “pejotização”.

“Pejotização” é neologismo utilizado para se referir a contratação de pessoas jurídicas para a prestação de serviços. Todavia, historicamente, o que se conhece por “pejotização” é a fraude à contratação de trabalhadores, conforme aponta a Professora da FGV-SP, Olivia Pasqualeto. Embora celebrem instrumento contratual de prestação de serviços, na prática esses trabalhadores atuam como verdadeiros empregados, mas sem a proteção garantida pela CLT. Cuida-se, na verdade, de prática que viola flagrantemente a regra prevista no art. 9º da CLT, que considera fraudulenta e nula de pleno direito toda e qualquer atividade tendente a burlar os dispositivos trabalhistas que definem e regem a relação empregatícia.

Ou seja, o trabalhador labora com pessoalidade, subordinação, não-eventualidade e onerosidade, mas, pelo fato de constituir uma pessoa jurídica (o que, muitas vezes, acaba sendo imposição da própria empresa antes de contratar), é enquadrado como mero prestador de serviços ou “autônomo”, afastando toda a rede de tutela que as normas juslaborais asseguram, como férias remuneradas, aviso prévio, FGTS, descanso semanal remunerado, repouso para descanso e alimentação, limitação de jornada, adicionais por trabalho noturno, insalubre e perigoso, intervalo interjornadas, entre outros.

Essa discrepância entre forma e realidade tem solução há muito conhecida pelo Direito do Trabalho e utilizada cotidianamente nas varas trabalhistas Brasil afora para identificar a existência ou não de vínculo empregatício: o princípio da primazia da realidade, consubstanciado no art. 9º da CLT. Se, na prática, houver a configuração de todos os elementos que enquadram a pessoa trabalhadora no art. 3º da CLT, independentemente do que estiver disposto no instrumento de contratação ou do que tiver sido acordado verbalmente entre as partes, não será possível afastar o vínculo. Afinal, a caracterização da relação de emprego é questão de análise casuística pelo magistrado e que se aperfeiçoa em função da existência simultânea dos elementos previstos nos arts. 2º e 3º da CLT, independentemente da vontade das partes.

O próprio Código Civil, em seu art. 593, prevê que apenas será regida pelas disposições da lei civil a prestação de serviços que “não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial”, de modo que se deve avaliar concretamente, a partir dos fatos e elementos da realidade, se estão ou não presentes os pressupostos da relação de emprego que submetem a contratação à CLT. O princípio da primazia da realidade serve exatamente a essa tarefa de compatibilizar a realidade com a forma, não sendo possível realizar esse exame abstratamente, a partir de situações genéricas e sujeitos universais.

O ponto central da discussão é a impossibilidade de tratar como sinônimos a “pejotização” e a “contratação de pessoa jurídica para prestação de serviços”. Conforme já demonstrado, a primeira não existe meramente para definir a segunda. A contratação em si de pessoas jurídicas para prestação de serviços não é ilegal, tanto que se vê no dia a dia uma série de relações jurídicas entre empresas nas mais diversas modalidades e regimes de sociedade, o que ocorre, muitas vezes, por meio de contratação de profissionais autônomos que têm regularmente registro como MEI ou SLU, por exemplo.

É evidente que os princípios norteadores das relações laborais serão fortemente esvaziados no caso de o STF decidir pela licitude desse tipo de contratação, independentemente de sua natureza fática. Mas essa seria apenas uma das consequências, conforme salientado por vários especialistas na audiência pública sobre o tema, já referida. O rombo no sistema de seguridade social é alarmante e já chega a R$89 bilhões aos cofres públicos desde a reforma trabalhista, segundo estudos da FGV.

Além disso, dados do IBGE apontam que 56% dos trabalhadores demitidos que se pejotizaram entre 2022 e 2024 recebem até R$2 mil mensais, enquanto outros 37% recebem até R$6 mil, o que demonstra o impacto em trabalhadores e trabalhadores em posição social e econômica mais vulnerável. Verificou-se que o número de trabalhadores por conta própria cresceu até 90% e que, do final de 2017 até 2023, o número de trabalhadores por conta própria classificados como MEI (com renda de até R$6.750 por mês) aumentou 24%. Além disso, segundo a nota técnica SEI nº. 3025/2025/MTE, entre janeiro de 2022 e outubro de 2024, quase 3,9 milhões de trabalhadores brasileiros foram demitidos e, para continuarem trabalhando, constituíram MEI, revelando uma “migração forçada do emprego formal para a pejotização”.  Isso desmonta o argumento que alguns Ministros do STF têm invocado em Reclamações, de que a pejotização é uma necessidade do mercado de trabalho para os profissionais ditos hiperssuficientes. Já indicamos em artigo anterior que profissionais de baixíssima qualificação e renda estão sendo pejotizados e fraudados em seus direitos sociais, incluindo até garis.

Outras consequências relevantes em tornar lícita a pejotização referem-se aos reflexos concorrenciais no mercado de ofertas de trabalho (como também apontado pela equipe de pesquisa da Profa. Pasqualeto), uma vez que empregadores adequados à legislação trabalhista e que tentam compatibilizar o princípio da livre iniciativa com o valor social do trabalho acabarão sendo prejudicados em relação àqueles que “pejotizam” sua mão de obra e reduzem, por consequência, custos importantes que vão influenciar no lucro da atividade empresária. Ou seja, haverá uma corrida ao fundo do poço (“race to the bottom”), fato conhecido na teoria econômica.

Permitir que isso aconteça tornará o Brasil uma verdadeira “nação de pejotizados”, nas palavras do Ministro Flávio Dino. E disso decorre uma série de repercussões negativas aos trabalhadores e trabalhadoras: enfraquecimento da liberdade sindical, restrição à aplicação das normas de saúde e segurança do trabalho, precarização e desproteção das mulheres (com a perda da estabilidade e garantia de emprego durante e após a maternidade, bem como proteções contra assédio sexual) e aprofundamento de vulnerabilidades que infelizmente ainda marcam a realidade do mercado de trabalho brasileiro, como a desiguladade salarial, a discriminação por cor, gênero, idade e orientação sexual e a marginalização de pessoas portadoras de deficiência. Com a pejotização, o oceano de riscos do negócio acabará sendo transferido e compartilhado com a “empresa” contratada para prestar serviços, que, na prática, é o próprio trabalhador, deixado à deriva.